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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Duas caras de um mesmo amor


Ele queria um paletó caqui, ela um longo vermelho de um estilista caro. Na verdade, o que ele queria mesmo era o status que aquele paletó o dava. Um ar de senhor importante, mesmo não tendo nem onde cair morto! Gostava de Bossa Nova publicamente, mas sozinho preferia um Tango de Gardel. Torcia mais contra o Félix Esporte Clube que a favor do seu tão amado Regione, torcedor de assiduidade comprovada. Assim era sua vida, uma grande mentira. Um mundo que criara para tentar mostrar o que queria ser quando era pequeno, quando sonhava.


Pediu a mãe que fechasse seu espartilho no máximo, suspirou e prendeu o ar fundo, fez um "vai"com a mão. Pegou um channel de bico fino, lindo, ela pensou. Pegou o chapéu, ela desceu as escadas. Tirou a chave e o relógio de bolso, ela acenou um tchau e mandou um beijo. Olhou as horas e abriu a porta, ela abriu a porta do taxi e entregou um papel ao motorista: "Alameda dos Tupiniquins - 480". Entrou no ônibus com o mesmo destino dela, chegaram juntos.


Rapidamente a moça já estava situada em uma grande sala. O homem havia ficado na rua, degustando seu cigarro, como sempre fazia antes de subir os dois lances de escada.


Por "Erros do Coração" Bette Davis entrou em cena antes dele. A crise da atriz no filme era a mesma da, igualmente atriz, na platéia. Uma fingia ser frente as câmeras e a outra, frente ao espelho. Ele surgiu, ninguém viu. Sentou e ajeitou o quadril na cadeira, olhou pro lado e a viu. O homem reparou a elegante beleza que a mulher propunha para todos. Aqueles cabelos sedosos e aquela boca carnuda faziam com que qualquer homem se apaixonasse. Ele sabia que tudo naquela moça era de verdade e que, com aquele olhar de angústia, ele a invejava com todas as suas forças. Bebeu todas que conseguiu, e as que não desceram, cuspiu. Ficou ali entre a mulher e o copo, optou pelo segundo.


A manhã seguinte não foi muito agradável. Sua cabeça estava doendo muito e a obra que estavam fazendo na frente de sua casa não ajudava em nada. Tomou uns dois ou três comprimidos de um remédio para aliviar sua ressaca. Não funcionou. Naquele dia, o homem ficou deitado o tempo inteiro tentando lembrar do que havia feito na noite passada.Ela levantou bem disposta e bem vestida: camisola de seda, pantufas e um cigarro no caminho para a cozinha. Tomou seu café, pão e leite, como fosse um manjar matutino. Lembrou do homem.


Durante os próximos dias, o homem não saiu de casa. Ficou deitado na mesma posição que estava no dia da ressaca, pensando na linda mulher que vira. Não conseguia deixar de lembrar daquele olhar de canto, meio de despreso, que havia recebido pela mulher. ''Aqueles olhos atiraram em mim como um fuzil'', pensou o homem enquanto fumava. Ela ligou a vritola e colocou Ponteio, com Edu Lobo e Marilia Medalha, cantou com a alma. Ele, deitado.


O homem se revoltou, esclareceu umas poucas e boas com o seu reflexo, gritou tudo o que tinha para gritar e xingou tudo o que tinha para xingar. Depois pegou sua caixa de charutos cubanos retirou um e o acendeu, acalmou-se. Decidiu que o silêncio interno lhe bastava, arrumou meia duzia de palavras, decorou-as e saiu. Saiu de si e de casa, foi. A moça ficou em casa, ouvindo seus LP's olhando as núvens de sua janela. Ela também saiu, sumiu de sua cabeça e foi para outro mundo, um mundo onde esqueceria daqueles olhos angustiados.


A complexidade de um vazio é a entrada de um grão, ambos sabiam. Ambos temiam. Ambos não sabiam amar, não quiseram aprender. Preferiram viver uma vida de solidão e apatia.


Aconteceu que num domingo qualquer ele foi ao parque, ela também. Ele levou um rádio de pilha, ela um livro de Capote. Os dois sentaram na mesma arvore, um de cada lado. O homem ligou seu rádio e a mulher abriu seu livro. O som a incomodou, e foi por isso que eles se encontraram, embora ja tivessem se visto. A moça, um pouco agressiva, foi até o outro lado da arvore e reclamou do barulho que não a deixava ler. O homem ficou sem palávras.


As partes se defaziam pelo todo, estavam entregues. A mulher ficou encarando o homem que não falava nada. Ela não parava de olhar nos olhos dele, olhos de angustia. E ele continuou espantado, sem falar nada. Ela acabou sentando do lado dele. Afinal, o amor é passível de sentido?




Postado por Pedro Alcamand Mota (05/09/2010 a 19/10/10)


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